Caminhar não é tudo!!!

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Normalmente, quando se pensa em atividade física para idosos, ou para pacientes diabéticos, hipertensos, coronariopatas, os quais, em geral, se encontram da meia idade para frente, a prática da caminhada surge como a opção primária entre tantas a serem pensadas. Entretanto, restringir a iniciativa da atividade física, tão necessária e imprescindível para essas populações, à prática exclusiva da caminhada, consiste em um equívoco preocupante, uma vez que essa prática exclusiva não contempla grande parte das demandas de estimulação por meio do exercício físico relacionadas ao envelhecimento e às doenças crônicas não transmissíveis.

Vamos aos fatos e argumentos!

Um dos aspectos mais peculiares do processo de envelhecimento, principalmente sedentário, é a perda de massa muscular e, consequentemente, de força muscular, a qual se inicia por volta dos 30-35 anos e se exacerba após os 45-50 anos de idade. Sendo assim, com o avançar da idade, a perda associada de massa muscular e força muscular consiste num dos maiores problemas relacionados ao envelhecimento e deveria, prioritariamente, ser atenuada a todo custo, pois traz repercussões funcionais e clínicas de alta relevância para a saúde do indivíduo. Essa perda de massa muscular é denominada de sarcopenia.

Quando se perde massa muscular e força muscular, a capacidade de realizar trabalhos físicos (motores) relacionados à transferência do peso corporal se compromete, o que leva à percepção de aumento da dificuldade de realizar essas tarefas, com maior ocorrência de fadiga, resultando, finalmente, na diminuição do nível de atividade física espontânea ao longo dos dias, com consequente diminuição da estimulação dos músculos (já em processo de degeneração). Veja o círculo vicioso que se estabelece nesse quadro: quanto mais sarcopenia, menos se movimenta, e quanto menos se movimenta, menos se estimula os músculos, o que resulta em mais perda de massa muscular (incremento da sarcopenia). A própria realização da caminhada é comprometida em idosos sarcopênicos, uma vez que essa prática, em função de sua baixa intensidade, não promove resgate, e nem mesmo manutenção da massa muscular. Isso significa dizer que, caso a caminhada esteja sendo realizada com o intuito de estimular o sistema cardiovascular e promover melhora de sua função, com a ocorrência da sarcopenia e sua subsequente exacerbação, a estimulação do sistema cardiovascular será progressivamente menor!!! Sendo assim, fica claro que a caminhada não pode ser a opção primária da população idosa em relação à atividade física, pois a força é prioritária, principalmente nos primeiros 3 a 4 meses do programa de treinamento!!!

A única maneira de se amenizar a sarcopenia, ou resgatar a massa muscular após os 40-50 anos, é por meio da realização de exercícios de força muscular.

Isso não implica em realizar, necessariamente, somente a musculação (ou qualquer outro meio de exercício resistido), pois esse não é o único meio de exercício de força. Pode-se realizar exercícios com o próprio corpo, desde que adequadamente conduzidos para assegurar o nível mínimo de estimulação progressiva para promoção da hipertrofia muscular.

Outro aspecto importante desse quadro de deterioração do sistema musculoesquelético do idoso reside no fato de que, a maior contribuição dessa perda de massa muscular é determinada pelas fibras do tipo II, em especial, as do tipo IIb, justamente as mais hipertrofiadas e mais fortes do sistema muscular. Vale lembrar que estas fibras, por serem mais hipertrofiadas, consomem maior quantidade de energia, e sua degeneração tem impacto considerável sobre a redução da taxa metabólica basal. Além disso, as fibras IIb são diretamente recrutadas em ações motoras de alta intensidade, de potência muscular, como uma contração vigorosa da grande massa muscular mediante perda momentânea do equilíbrio dinâmico, por exemplo, por escorregar no tapete, ou tropeçar no móvel da sala. Sem a ação qualificada destas fibras, o risco de queda é aumentado no idoso. Perceba porque idosos acima de 75 anos, com alto nível de sarcopenia e de perda prioritária das fibras IIb são mais susceptíveis às quedas, principalmente em ambiente domiciliar (quedas banais), com consequente fratura do fêmur e internação. Sem dúvida, a exacerbação da sarcopenia nos idosos mais idosos (acima de 75 a 80 anos) representa um problema de saúde pública de alta relevância, que deveria ser encarado dessa forma, ou seja, sob a ótica da sarcopenia e suas consequências. Certamente, esse olhar implicaria em políticas públicas que estimulassem o treinamento de força em toda a população, mas com priorização para os idosos que ainda se mantenham sedentários, ou exclusivamente praticantes de caminhada. Fica claro que esse enfoque, o qual é imperioso, não permitiria a existência desse modelo imbecil das academias ao ar livre, com os equipamentos inócuos para a saúde musculoesquelética e orgânica geral do idoso!!! Onde está nosso glorioso CREF para se posicionar em relação a essa realidade?

Pense agora na relação da perda de massa muscular e força muscular com a perda de massa óssea. Mulheres idosas, que são mais afetadas por essa perda óssea em comparação aos homens, em função da menopausa e da ausência da secreção de estrógeno, deveriam, portanto, ter atenção especial quanto à prática do treinamento de força. O que ocorre em nosso meio é justamente o inverso, ou seja, até se desestimula o treinamento de força para essas mulheres, que em geral, são encaminhadas para a hidroginástica em função do quadro diagnosticado de osteoporose. Infelizmente, a piscina não é, e nunca será, o meio mais adequado para resgate ou preservação de massa óssea. Para isso, é preciso, primeiramente, a ação da gravidade e, secundariamente, o impacto ou a tração sobre os ossos. O treinamento de força contempla o estímulo de tração óssea, com benefício incomparável sobre a densidade óssea. A caminhada não tem o impacto necessário para evitar a perda mineral óssea, ou para resgatar o que já foi perdido dessa mineralização. A hidroginástica, muito menos!!!

Em pleno ano de 2020 ainda estamos adotando a caminhada como pilar central de programas de treinamento para idosos. Praticamente a única atividade física que um idoso sedentário realiza é caminhar e, quando procura um profissional, este o coloca para… CAMINHAR!!!

O motivo principal de preocupação com essa “monocultura” da caminhada por parte dos idosos é o fato de que 70 a 80% da população acima de 60 anos no Brasil é sedentária; destes 20 a 30% que restam de fisicamente ativos, 90% pratica somente a caminhada. Essa realidade precisa mudar urgentemente!!!

Particularmente, costumo dizer que a prática do treinamento de força (que pode ser por meio da musculação), pode ser entendida, em termos de valor para a vida dos adultos, da seguinte forma: para os adultos jovens (20 a 30 anos) é legal fazer musculação; para os adultos de 30 a 40 anos, é importante fazer musculação; para adultos de 40 a 50 anos, isso já passa a ser imprescindível (não há escolha!); e para aqueles com mais de 50 anos, é VITAL fazer musculação (força). Portanto, após 50 anos, não fazer treinamento de força sistematicamente, implica em “negligenciar” nossa saúde e nossa vida!!!

Se já não bastasse esse conjunto de argumentos relacionados ao papel “vital” do treinamento de força para a população idosa (e para todos), ainda temos outro argumento de peso para corroborar a tese de que a prática isolada da caminhada não é um hábito de cultura física dos mais adequados.

Juntamente com a capacidade de força muscular, na medida em que envelhecemos, também temos diminuição progressiva de um outro espectro de capacidades, que são as capacidades motoras coordenativas. Minha definição para essas capacidades é a seguinte: representam todas as nossas capacidades motoras cujo nível de expressão é determinado por mecanismos de controle e regulação do sistema nervoso central sobre a massa muscular (músculos esqueléticos). Dessa forma, todas as capacidades motoras coordenativas se originam, exclusivamente, no cérebro, mais precisamente, nas áreas do sistema nervoso central (SNC) responsáveis pelo controle dos nossos movimentos. Para melhor entendimento dessas áreas, veja nossas postagens sobre Aptidão Física, assim como, nosso texto crítico sobre Treinamento Funcional.

Resumidamente, as capacidades motoras coordenativas são:

  • Capacidade de coordenação motora: grosseira, fina, óculo-manual, óculo-pedal e de múltiplos membros
  • Capacidade de coordenação motora espaço-tempo
  • Capacidade de equilíbrio: estático, dinâmico e recuperado
  • Capacidade de ritmo: extrínseco e intrínseco
  • Capacidade de reação: simples e complexa
  • Capacidade de antecipação motora
  • Capacidade de representação motora

Uma vez que todas essas capacidades vêm sendo diminuídas com o processo de envelhecimento e, reconhecendo-se o papel de cada uma para realização de uma infinidade de tarefas motoras cotidianas, desde as mais simples, como as domiciliares, até as mais complexas, como no esporte e no lazer, fica óbvia a essencialidade da estimulação das mesmas, para enriquecimento do universo de atividades motoras possíveis de serem realizadas espontaneamente pelos idosos.

Como se faz para estimular o SNC e aprimorar o controle sobre a massa muscular?

Basicamente, estimular o SNC significa incrementar as conexões sinápticas entre as várias áreas cerebrais responsáveis pelo controle dos músculos esqueléticos, assim como, incrementar as conexões dessas áreas com os próprios músculos. Estas áreas são a medula espinhal, a formação reticular do tronco cerebral, a substância negra mesencefálica e os gânglios da base, o córtex pré-motor, o córtex motor primário e o cerebelo (a mais “nobre” das áreas de controle motor). Para promover esse incremento de conexões sinápticas devemos fazer algo simples: DESAFIAR o sistema nervoso central.

O que significa exatamente desafiar?

Simplesmente obrigar o SNC, por meio dos exercícios de treino, a controlar a musculatura esquelética de uma forma que ainda não seja de “domínio” do cérebro. O aspecto principal dessa estimulação inusitada sobre o SNC é saber como proceder de maneira pedagógica, pois caso o desafio seja simples demais, ou complexo demais, o aluno perde a motivação para a execução dos exercícios.

Será que a prática exclusiva da caminhada representa algum tipo de desafio de controle motor para o SNC? Obviamente que não e, sendo assim, NENHUMA das capacidades coordenativas será contemplada realizando-se, exclusivamente, a caminhada. Por esse motivo, quando alguém, principalmente idoso, afirma que está cuidando de sua saúde realizando caminhada todos os dias, faço questão de mostrar o quanto essa percepção está equivocada. Pense novamente nas quedas em idosos mais frágeis. A caminhada irá aprimorar a capacidade de equilíbrio estático e/ou dinâmico, tão determinante do risco de queda individual? A resposta é novamente óbvia: NÃO!!!

Por outro lado, imagine um idoso que seja estimulado a andar para trás, ou para os lados, ou em zigue-zague, ou tenha que girar, transpor obstáculos etc, e apresente dificuldade para controlar esses padrões de movimento. Isso significa que nesse indivíduo, esses exercícios representam um desafio para o SNC e, portanto, em breve, haverá incremento de conexões sinápticas, com consequente aprimoramento do controle motor (coordenação motora) dos mesmos. Sendo assim, esses exercícios induzirão à melhora das capacidades motoras coordenativas especificamente envolvidas com esses padrões de movimento.

Mas atenção. Não denomine esses exercícios como “funcionais”, ou um treino com esse perfil de exercícios, como “treino funcional”. Isso é ridículo, pois esse é um treino de capacidades motoras coordenativas, ou se preferir simplificar, treino de coordenações ou coordenativo.

Portanto, essa terminologia “funcional” representa simplesmente uma aberração do conceito de treinamento das capacidades coordenativas, um conceito básico da Educação Física e sua subárea do Treinamento Desportivo.

Como se não bastasse todos esses argumentos, ainda há um problema adicional com a prática exclusiva da caminhada, que é o fato de que, praticando somente a caminhada, não há possibilidade de se aumentar a capacidade aeróbia (o VO2máx) ou a aptidão cardiovascular acima de 5 a 10%. Essa limitação de aumento da capacidade aeróbia inerente à caminhada decorre simplesmente da falta de intensidade da caminhada para elevar o VO2máx a valores acima de 8 a 9 METs. Dessa forma, não será possível promover o resgate da capacidade aeróbia dos idosos por meio exclusivamente da prática da caminhada. Vale lembrar que a capacidade aeróbia (ou o VO2máx), assim como a força e as capacidades coordenativas, também exibe redução gradual e progressiva com o envelhecimento, de aproximadamente 10% a cada década, a partir dos 30-35 anos. Sendo assim, o VO2máx de idosos sedentários de 70 anos, apresenta valores em torno de 30 a 40% menores que aqueles observados aos 20 a 30 anos, e o resgate desses valores é rigorosamente impossível de acontecer somente com a prática da caminhada. Em algum momento do processo de treino, haverá a necessidade de se incrementar a intensidade dos treinamentos, mesmo que seja caminhando em subida com 5 a 10% de inclinação, pois essa será a única forma de realmente melhorar a aptidão cardiovascular dos idosos ou doentes crônicos.

Portanto, em função do exposto ao longo do texto, espero que tenha reunido argumentos suficientes para a compreensão de que, para a construção de níveis ótimos de aptidão física CAMINHAR NÃO É TUDO, para qualquer indivíduo e, em especial, para populações geriátricas, mais penalizadas pelas perdas físicas associadas ao processo de envelhecimento.

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